DOCUMENTOS             


Nome: BALÉM, João Maria & COSTA, Adroaldo Mesquita. Antônio Leite Costa. 1952.

Descrição:

BALÉM, João Maria, Monsenhor. A Paróquia de S. José de Taquari no bicentenário da colonização açoriana no Rio Grande do Sul (1752-1952). Porto Alegre: A Nação, s/d, p. 159-161.
 
Antônio Leite Costa
 
Como preito de saudade ao jovem acadêmico, Antônio Leite Costa, falecido no desastre de avião no dia 2 de agosto de 1949, em Jaquirana, municipio de São Francisco de Paula, e cujos restos mortais repousam no cemitério de Taquari, transcrevemos a seguinte:
CRÔNICA de Monsenhor Henrique de Magalhães, lida ao microfone da "Rádio Jornal do Brasil", do Rio de Janeiro.
"Sempre que nos chegam notícias de acidentes, de catástrofes, sentimos constrangido o coração. Ainda recentemente o incêndio do avião da VARIG, que do Rio demandava a Porto Alegre, causou a todos emoção profunda; tanto mais que os passageiros eram jovens estudantes, em vidas em pleno desabrochar. Para mim outro motivo de pesar profundo, a morte de Antônio Leite Costa - o Antônio, como todos o chamávamos.
Conheci-o na capital gaúcha, por ocasião do V Congresso Eucarístico Nacional. Eu fazia parte da comitiva do Cardeal Legado Pontifício, ficando hospedado em casa dos pais de Antônio, o ministro da Justiça Adroaldo Mesquita da Costa e dona Cecy, sua prendada esposa. Comecei logo a admirar o jovem que todos cativava pelos seus extraordinários dotes de espírito e de coração. Era o nosso companheiro inseparável e diligente "cicerone" e em tudo se saía maravilhosamente; ora na direção do volante do automóvel, ora ao nosso lado, contava histórias, fazia-nos rir, recordava tradições gaúchas, lembrava cenas pitorescas, falava a linguagem dos colonos, arremedando-os naquele meio dialeto... Todas as informações possíveis e imagináveis o Antônio sabia dá-las como ninguém.
Esse rapaz, quase menino, orçava então pelos 18 anos. Entretanto, no cumprimento de seus deveres, tinha a sisudez da idade madura. Era o administrador das propriedades do pai em Taquari e cuidava de tudo primorosamente. Estava concluindo seu curso de agronomia e veterinária, todavia desde os 16 anos sabia tratar das plantas e do gado como um velho fazendeiro. Fazia negócios de chãos e de animais com justeza e critério, e o pai sempre aprovava e louvava tão perfeito "administrador" que era a honestidade em pessoa e sabia zelar pelos bens da família, procurando sempre aumentá-los e valorizá-los. Agora emsmo ele tinha quase concluído um bom negócio, a compra de grande mata, por apenas sessenta mil cruzeiros. O dono da mata procurou o pai de Antônio e lhe fez ver... o rapaz estava para ultimar o negócio... entretanto... se o dr. Adroaldo não achasse conveniente... E este, sem vacilar, respondeu: "Meu filho queria o negócio? Eu também o quero! Considero como feito o que o Antônio desejou fazer". Disse, sem ver a mata, sem perguntar mais coisa alguma. Tinha absoluta confiança no filho.
Antônio, como observei há pouco, era exato no cumprimento do dever. Entre os seus papéis o pai achou uma cartinha que foi ao seu destino e voltou, não sei porque, ao remetente. Era dirigida a uma menina que o apreciava muito. Tinham combinado ir a uma reunião em Porto Alegre. Ele tinha quase 16 anos. E escreveu: "Não posso cumprir o prometido; acabo de receber um bilhete do nosso empregado em Taquari. Deu o ccarbúnculo no gado; duas novilhas menores lá se foram. Se eu não correr a vacinar o gado imediatamente tudo está perdido. Vai à festa, diverte-te bastante. Receba as saudações deste agricultor preocupado".
Eis a perda que abalou uma família e milhares de corações amigos!
O Antônio conhecia todo o pessoal da VARIG, da qual seu pai foi um dos fundadores. Logo que percebeu algo de anormal, uniu-se aos tripulantes para enfrentar a catástrofe. A fumaça invadia todo o avião. Os passageiros sentiam falta de ar. Era uma fuligem negra que envolvia tudo e enegrecia rostos e mãos... passageiros e tripulantes ficaram irreconhecíveis! Combinou-se que o Antônio ficaria em uma das portas da qual devia tirar a tranca, guardando-a para que ninguém a forçasse antes do momento oportuno. Quando o avião tocasse no solo as portas seriam abertas. O primeiro contato com a terra foi violentíssimo, e logo o segundo, o terceiro... e o avião aos trancos afinal. A porta abriu-se com fragor e uma onda de alucinados precipitou-se para fora, buscando o ar, a vida, prostrando em terra o moço que caiu de costas batendo com a base do crânio numa pedra, tendo morte instantãnea! Até esse instante horrivelmente trágico ele não cessava de pedir calma, de aconselhar coragem. Em certo momento, quando era maior a angústia, ouviu-se a voz de Antônio:
"Quem tiver o escapulário do Carmo, agarre-se a ele!" - É a educação que recebem filhos e filhas desse casal, modelo de família católica: Confissão, comunhão, retiro espiritual, piedade, interesse, e sobre esta base sólida todas as virtudes que ornam o bom cidadão, a mãe de família exemplar. Quanta grandeza numa época em que tantos que se julgam grandes são tão pequenos!...
As homenagens prestadas ao jovem morto, foram de emocionar. O Antônio não tinha desafetos. Porto Alegre em peso se mobilizour, desfilando diante dos despojos. O Arcebispo D. Vicente Scherer, Monsenhor Balém, que batizou o Antônio e muitas vezes o carregou nos braços em pequenino, e todo o clero estiveram ao lado do pai do morto e sufragaram aquela alma de beleza peregrina, com a santa missa e fervorosas orações. Taquari reclamou o direito de guardar no seu campo santo o corpo do prezado amigo. Fez-se-lhe a vontade. O féretro foi depositado no salão do Fórum, onde milhares de pessoas o velaram, dentro e fora do edifício - uma verdadeira apoteose. O enterro foi a homenagem final. O povo fez questão de conduzir o féretro a mão até a sepultura... e ouvia-se o soluçar da multidão!
E assim desapareceu, na flor da juventude, o bom e querido Antônio! Viveu pouco, mas soube encher de letras de ouro o precioso livro de sua vida: como católico, como filho, como homem de trabalho, como amigo, em tudo admirado!
Fui ontem ver a família enlutada. Fiquei edificado com aquele exemplo de dor silenciosa e humilde... de perfeita resignação cristã. Quanto ai pai não vi nele o ministro da justiça, nem o jurista consumado, nem o político aureolado de prestígio, não. Eu vi apenas o pai, ferido no âmago de seu coração... eu vi o católico inteiramente conformado com a vontade de Deus... foi isto que me empolgou, que me arrebatou!
Prezados ouvintes, Deus vos conceda sua paz, e sua benção. Boa noite."
 
***
Incluindo como uma pepita de ouro nessas despretenciosas páginas sobre a paróquia de São José de Taquari, transcrevemos a Carta de Saudade a seu filho Antônio, publicada por s. ex. o dr. Adroaldo Mesquita da Costa no semanário de sua cidade natal - O Taquariense:
 
Carta de Saudade
 
COSTA, Adroaldo Mesquita da. Carta de Saudade. In: BALÉM, João Maria. A Paróquia de S. José de Taquari no bicentenário da colonização açoriana no Rio Grande do Sul (1752-1952). Porto Alegre: A Nação, s/d, p. 161-162.
 
"Meu querido Antônio.
Faz hoje precisamente um mês, que a esta mesma hora (sete da manhã) eu te deixei num avião da nossa Varig, para que regressasses a Porto Alegre.
Terminaras as férias de julho. Havias-me acompanhado na viagem ao Ceará e conhecido as cidades de Natal, Fortaleza e Vitória. Urgia regressares para continuares os estudos na Escola de Agronomia.
Quem diria que fosse aquela a nossa derradeira despedida e que, nete mundo, não mais conversaríamos como bons amigos que sempre fomos! Consola-me, porém, a confortadora certeza de que a morte não é o termo da vida, senão o prelúdio da eternidade e a aurora da ressurreição.
Um dia, todos nós, a nossa família inteira, sem faltar um só, e assim espero da Misericórdia Divina, haveremos de louvá-la em coro, na Jerusalém dos eleitos.
Partiste de surpresa sem que houvesse ultimado tantas coisas projetadas e combinadas. Fiquei sem ti, mas a recordação de teu nobre espírito viverá sempre em minha saudade.
O mundo não compreende como é que tu tão jovem, tão ceio de esperanças, quando tu te sorria, tenhas sido tão cedo arrebatado pela morte, enquanto outros, sofrendo e penando, verdadeiro peso morto no organismo social, aqui ficam carregando suas misérias, exibindo seus vícios e, talvez, somente praticando o mal.
Meu Deus que é o Amor - Deus charitas est - tudo faz pelo melhor e, imperscrutáveis desígnios de sua Providência, deliberou levar-te para junto de Si, antes que experimentasse a maldade deste mundo enganador, de que só conhecestes o lado bom e generoso, como bom e negeroso foi sempre o teu coração de filho amoroso e obediente, de irmão cheio de afeto e de carinhos por todos os de teu sangue e os de sangue alheio.
Viveste a tua fé e praticaste a grande lei da caridade. Foste cumpridor de teus deveres de estudante e madrugaste no exercício da profissão de agricultor que havias escolhido e para a qual te preparavas, com dedicação e com afinco.
Derrubavas matos; plantavas roças; cuidavas do teu gadinho; estendia arames nas cercas da herdade que um dia seria tua e cujos moirões havias ajudado a cravar, com as tuas próprias mãos, tão moças na idade, mas já tão velhas nas rudes lides do trabalho honesto de homem simples do campo que já o eras.
Da tua última morada, se te fosse dado contemplá-la, porque fica aí perto de teus olhos - sentirias a alegria de ver como tudo floresce e como o teu trabalho foi abençoado por Deus.
Tudo quanto trataste, eu estou cumprindo; quanto projetamos e combinamos, eu procurarei executar.
O teu, o nosso Aero Clube segue apra a frente; o pagamento de sua subvenção, pela qual tanto te interessaste aqui, já foi ordenado e o da nossa Exposição do Centenário já feito à Prefeitura.
Partistes, mas a vida continua e continuará sempre - vida mutatur, non tolitur - e nós precisamos vivê-la muito embora tenhamos de fazer de nossa dor um poema, para cantá-lo, neste vale de lágrimas, pois ela há de ser sempre para nós mais um motivo para servir a Deus, neste mundo, que é lugar de prantos, como o proclama o Livro dos Juízes.
Até um dia, meu querido Antônio.
Teu pai
Adroaldo
Rio, 2-9-1949."